[Direitos Humanos] O julgamento de Deus

Data de postagem: Apr 23, 2013 11:42:19 AM

Marcelo Barros

Monge beneditino e escritor

Adital

A maioria da sociedade civil brasileira estranha que o deputado posto na coordenação da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal manifeste opiniões preconceituosas que não contribuem com os direitos humanos, principalmente de grupos minoritários e vítimas de discriminação social. O Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de assassinatos homofóbicos. Contabiliza 44% das ocorrências no globo. De 2007 a 2012, calculam-se em 1.341 homicídios contra a população LGBT. O Disque 100 recebe por dia, em média, oito denúncias de violência contra homossexuais. Em 2012, no país, foram registrados 338 assassinatos de gays, travestis e lésbicas, sem falar nos casos não denunciados. Nesse contexto, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados tem como coordenador alguém cujas posições públicas contribuem para reforçar preconceitos. O mais grave de tudo não é o deputado Marco Feliciano afirmar que Deus, pessoalmente, é o mandante do assassinato de John Lemmon ou é o responsável pelo acidente que vitimou o grupo Mamonas Assassinas, nem que tornou os negros amaldiçoados por serem filhos de Cam, o filho rebelde de Noé.

Ao afirmar isso como quem defende o direito de Deus ser cruel, desumano e despótico, ele põe em julgamento não as categorias e pessoas que ele discrimina e sim o próprio Deus. Deus é o réu em um julgamento no qual quem o diz defender, verdadeiramente o acusa e quem não fala em Deus parece mais ser seu representante. Por isso, as posições do deputado Feliciano nos desafiam não apenas a protestar contra o pensamento que consideramos absurdo em alguém que se diz cristão, mas a nos preocupar com o fato de que esse tipo de visão é muito comum entre os cristãos e tem muitos seguidores entre pastores e fiéis em todas as Igrejas. Na semana passada, em um grande evento de uma Igreja pentecostal em Brasília, o pastor Feliciano foi aplaudido de pé por 40 mil pessoas. Infelizmente muitos pastores pentecostais, evangélicos e mesmo alguns prelados católicos não se pronunciam tão explicitamente, mas pensam do mesmo modo sobre Deus, sobre a sociedade e sobre a vida. Não são poucos os padres e bispos católicos, assim como pastores evangélicos de Igrejas históricas com as mesmas posições homofóbicas, discriminatórias e intolerantes do pastor Feliciano. Há poucos anos, depois do terremoto do Haiti, um pastor foi à televisão e declarou que aquilo aconteceu como castigo do Deus porque os haitianos adoram deuses africanos. No Brasil, há alguns anos, um cardeal declarou que a Aids é um castigo de Deus para a humanidade pecadora. Ao nos deparar com essa interpretação fundamentalista da fé, podemos compreender a posição de Richard Dawkins, filósofo ateu, que afirmou: "Encher o mundo com religião e principalmente com religiões monoteístas equivale a espalhar pelas estradas pistolas carregadas. Não se surpreendam se elas forem usadas”. E assim, se tornam compreensíveis cruzadas, tribunais de inquisição, caça às bruxas e perseguições de hereges. E os fiéis continuam contentes ao ler ao pé da letra que o Deus da Bíblia libertou os hebreus e afogou os egípcios no Mar Vermelho, mandou matar todos os cananeus, habitantes da terra, invadida pelo povo de Deus e inspirou o salmo que diz: "Podem cair mil à tua direita, dez mil à tua esquerda, fiques tranquilo que nada te acontecerá” (Sl 91). Esse modo pouco amoroso de compreender a fé ensina que existe inferno e diz que Deus amou Jacó e rejeitou Esaú.

Graças a Deus, cada vez mais cresce o número de cristãos que reconhecem a Bíblia como escritura de uma palavra divina, mas a partir de uma cultura humana e condicionada por elementos que temos de ser capazes de criticar e transformar. A própria revelação divina se deu em um processo evolutivo. A compreensão do patriarca Abraão de que Deus o mandava matar o seu filho Isaac, se transformou muito no decorrer da Bíblia. Evoluiu até Jesus revelar a Deus como Paizinho que "faz o sol nascer sobre os bons e sobre os maus e chover sobre os justos e os injustos” (Cf. Mt 5, 45). Roger Schutz, fundador da comunidade ecumênica de Taizé, resumiu: "Se é Deus, ele só pode amar!”. Um deus cruel e impiedoso que castiga e discrimina pessoas é um ídolo e não o Deus de Jesus Cristo. Um Deus menos humano e menos bondoso do que qualquer pessoa razoável do nosso tempo é um divisor (em grego, diabolos) e não o Deus do qual João escreveu: "Deus é amor, quem vive o amor, vive em Deus e Deus vive nessa pessoa” (1 Jo 4, 16).

 Fonte: http://www.adital.com.br